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“(...) ainda estamos comendo as sobras da Segunda Guerra”


A grande virada na moderna história do milho, que por sua vez marca um momento decisivo na industrialização dos nossos alimentos, pode ser localizada com precisão num dia de 1947 quando a grande fábrica de munição em Muscle Shoals, no Alabama, foi adaptada para começar a produzir fertilizante químico. Depois da guerra, o governo havia deparado com um enorme excedente de nitrato de amônio, o principal ingrediente para a fabricação de explosivos. O nitrato de amônio por acaso também é uma excelente fonte de nitrogênio para plantas. Chegou-se a pensar seriamente em pulverizar as florestas americanas com o excedente daquela substância química para ajudar a indústria madeireira. Mas agrônomos do Departamento de Agricultura tiveram uma ideia melhor: espalhar o nitrato de amônio nas terras cultivadas como um fertilizante. A indústria de fertilizantes químicos (juntamente com a de pesticidas, derivados de gases venenosos desenvolvidos para a guerra) é o produto do esforço do governo para adaptar sua máquina de guerra a propósitos pacíficos. Como costuma dizer em seus discursos a agricultora e ativista indiana Vandana Shiva, “ainda estamos comendo as sobras da Segunda Guerra”

O milho híbrido acabou se revelando o maior beneficiário dessa conversão. O milho híbrido é a mais gananciosa das plantas, consumindo mais fertilizante do que qualquer outro tipo de lavoura. Ainda que os novos híbridos contassem com genes capazes de sobreviver nas superpovoadas cidades de milho, nem mesmo o acre de solo mais rico de Iowa poderia ter alimentado 30 mil ávidos pés de milho sem esgotar prontamente sua fertilidade. Para evitar que suas terras ficassem “enjoadas de tanto milho”, os fazendeiros na época do pai de Naylor tinham o cuidado de alternar suas lavouras com leguminosas (que acrescentam nitrogênio ao solo), jamais plantando milho mais de uma vez no mesmo terreno num período de cinco anos. Eles também reciclavam os nutrientes espalhando pelos seus milharais esterco obtido com seus próprios animais. Antes do advento dos fertilizantes sintéticos, a quantidade de nitrogênio no solo estabelecia um limite rígido da quantidade de milho por acre que um solo aguentaria produzir. Ainda que os híbridos tenham sido introduzidos nos anos 1930, os milharais só viriam a explodir ao entrar em contato com os fertilizantes químicos na década de 1950. 

Tudo mudou com a descoberta do nitrogênio sintético – não apenas para o pé de milho e a fazenda, não apenas para o sistema de produção de alimentos, mas também para a maneira como a vida se desenvolve na Terra. Toda vida depende de nitrogênio; é ele o elemento essencial a partir do qual a natureza monta aminoácidos, proteínas e ácido nucléico; a informação genética que organiza e perpetua a vida está inscrita no nitrogênio. (É por essa razão que os cientistas dizem que o nitrogênio proporciona a qualidade da vida, enquanto os carbonos são responsáveis pela quantidade.) Mas o estoque de nitrogênio da Terra em condições de ser usado é limitado. Apesar de a atmosfera da Terra ser composta de nitrogênio em quase 80%, todos esses átomos são estreitamente emparelhados, não reativos e, portanto, inúteis; o químico do século XIX Justus von Liebig falava da “indiferença em relação a todas as substâncias” demonstrada pelo nitrogênio atmosférico. Para ser de alguma utilidade para plantas e animais, esses átomos de nitrogênio voltados para si mesmos precisam ser cindidos e em seguida unidos a átomos de hidrogênio. Os cientistas chamam esse processo de tomar átomos da atmosfera e combiná-los em moléculas úteis para os seres vivos de “consertar” esse elemento. Até que um químico judeu alemão chamado Fritz Haber descobrisse como realizar esse truque em 1909, todo o nitrogênio utilizável na Terra tinha sido em algum momento fixado por bactérias existentes no solo nas raízes das plantas leguminosas (como ervilhas, alfafas ou alfarrobeiras) ou, mais raramente, pelo choque elétrico de um relâmpago, que pode quebrar os laços do nitrogênio no ar, liberando uma leve chuva de fertilidade. 

O geógrafo Vaclav Smil, que escreveu um livro fascinante sobre Fritz Haber chamado Enriching the Earth, observou que “não há possibilidade de fazer crescer lavouras ou corpos sem nitrogênio”. Antes da invenção de Fritz Haber, a quantidade bruta de vida que a Terra podia sustentar – o tamanho das lavouras e consequentemente o número de corpos humanos – era limitada pela quantidade de nitrogênio que as bactérias e os raios podiam fixar. Em 1900, cientistas europeus admitiam que, a não ser que fosse encontrado um modo de potencializar este nitrogênio espontaneamente gerado, o crescimento da população humana logo se veria diante do seu limite, num impasse bastante doloroso. O mesmo reconhecimento algumas décadas mais tarde por parte dos cientistas chineses foi provavelmente o que levou à abertura da China ao Ocidente: depois da viagem de Nixon à China, em 1972, a primeira grande encomenda feita pelo governo chinês foi a de 13 grandes fábricas de fertilizantes. Sem elas, a China provavelmente teria sofrido com a fome. 

É por isso que talvez não seja exagerado afirmar, como faz Smil, que o processo Haber-Bosch (Carl Bosch obtém o crédito por comercializar a ideia de Haber) para fixar nitrogênio é a mais importante invenção do século XX. Pela sua estimativa, dois em cada cinco seres humanos hoje na Terra não estariam vivos não fosse pela invenção de Fritz Haber. Podemos facilmente imaginar um mundo sem computadores ou eletricidade, observa Smil, mas sem fertilizantes sintéticos bilhões de pessoas nem sequer teriam nascido. Ainda que, como sugerem estes números, os seres humanos possam ter selado com a natureza um pacto semelhante ao de Fausto quando Fritz Haber nos deu o poder de fixar o nitrogênio. 

Fritz Haber? Não, eu também nunca tinha ouvido falar dele, apesar de ele ter ganhado um Prêmio Nobel em 1920 por “melhorar os padrões da agricultura e o bem-estar da humanidade”. Mas o motivo da sua obscuridade talvez tenha menos a ver com a importância do seu trabalho do que com a sinistra reviravolta ocorrida na sua biografia, que chama nossa atenção para as ambíguas relações entre os conflitos contemporâneos e a agricultura industrial. Durante a Primeira Guerra Mundial, Haber empenhou-se no esforço de guerra alemão, e sua química manteve vivas as esperanças de uma vitória alemã. Depois que a Grã-Bretanha cortou o suprimento de nitrato – ingrediente vital na fabricação de explosivos – com o qual as minas chilenas abasteciam a Alemanha, a tecnologia de Haber permitiu que a Alemanha continuasse a produzir bombas com nitrato sintético. Mais tarde, quando a guerra ficou atolada nas trincheiras da França, Haber usou sua genialidade como químico para desenvolver gases venenosos – amoníaco e, em seguida, cloro. (Posteriormente ele desenvolveu o Zy klon B, o gás que Hitler iria usar nos campos de extermínio.) No dia 22 de abril de 1915, escreve Smil, Haber estava “na linha de frente dirigindo o primeiro ataque com gás da história militar”. Seu retorno “triunfante” a Berlim foi arruinado alguns dias depois quando sua esposa, uma colega cientista, enojada com a contribuição do marido ao esforço de guerra, usou a pistola de Haber para se matar. Ainda que Haber mais tarde tenha se convertido ao cristianismo, sua origem judaica obrigou-o a fugir da Alemanha nos anos 1930. Abatido, ele morreu num quarto de hotel em Basel, em 1934. Talvez pelo fato de a história da ciência ser escrita pelos vencedores, o nome de Fritz Haber e as suas realizações foram praticamente riscados do século XX. Nem mesmo uma placa registra o lugar onde fez sua grande descoberta na Universidade de Karlsruhe. 

A história de Haber encarna os paradoxos da ciência: revela nossa manipulação da natureza como uma faca de dois gumes, mostra o bem e o mal que podem advir não apenas do mesmo homem como também do mesmo conhecimento. Haber trouxe ao mundo tanto uma nova e vital fonte de fertilidade como uma nova e medonha arma de destruição. Como escreveu seu biógrafo, “é o mesmo homem e a mesma ciência fazendo as duas coisas”. E, no entanto, mesmo esse dualismo que separa o benfeitor da agricultura do produtor de armas químicas é por demais conveniente, pois até a iniciativa benéfica de Haber tem-se revelado uma dádiva ambivalente. 

Quando a humanidade adquiriu o poder de fixar nitrogênio, a base da fertilidade do solo deslocou-se de uma total dependência em relação à energia do Sol para uma nova dependência em relação ao combustível fóssil. Pois o processo Haber-Bosch funciona por meio da combinação de gases de nitrogênio e hidrogênio sob enormes calor e pressão na presença de um agente catalisador. O calor e a pressão são proporcionados por quantidades prodigiosas de eletricidade e o hidrogênio é suprido pelo petróleo, carvão ou, mais frequentemente nos dias de hoje, por gás natural – combustíveis fósseis. É verdade que esses combustíveis fósseis também foram, há bilhões de anos, criados pelo Sol, mas eles não são renováveis do mesmo modo que a fertilidade criada por uma leguminosa alimentada pela luz do Sol é renovável. (Este nitrogênio na realidade é fixado por uma bactéria que vive nas raízes da leguminosa, que troca uma pequena gota de açúcar pelo nitrogênio de que a planta precisa.) 

No dia, durante a década de 1950, em que o pai de George Naylor espalhou pelas suas terras o primeiro carregamento de nitrato de amônio, a ecologia de sua propriedade sofreu uma revolução silenciosa. O que tinha sido um ciclo de fertilidade local, ditado pelo Sol, no qual as leguminosas alimentavam o milho, que alimentava os animais, que por sua vez (com seu esterco) alimentavam o milho, agora se rompera. A partir daquele momento ele poderia plantar milho todos os anos e no espaço que quisesse das suas terras, já que não tinha mais necessidade das leguminosas ou do esterco animal. Podia comprar fertilidade em sacos, fertilidade produzida originalmente há bilhões de anos do outro lado do mundo. 

Livre das antigas restrições biológicas, a fazenda podia agora ser administrada com base em princípios industriais, como uma fábrica transformando matérias-primas – fertilizantes químicos – em produtos – o milho. Como a propriedade não precisa mais gerar e conservar sua própria fertilidade mantendo uma diversidade de espécies, o fertilizante sintético abre o caminho para a monocultura, permitindo que o agricultor introduza na natureza a economia de escala e a eficiência mecânica características de uma fábrica. Se, como já foi dito, a descoberta da agricultura representou a primeira queda do homem do seu estado natural, então a descoberta da fertilidade sintética é certamente uma segunda e vertiginosa queda. A fixação do nitrogênio permitiu que a cadeia alimentar se afastasse da lógica da biologia para adotar a lógica da indústria. Em vez de comer exclusivamente das mãos do Sol, a humanidade agora começava a provar do petróleo. 

O milho adaptou-se brilhantemente ao novo regime industrial, consumindo quantidades prodigiosas de energia de combustível fóssil para produzir quantidades cada vez maiores de energia em forma de alimentos. Mais da metade de todo o nitrogênio sintético produzido hoje é destinado ao milho, cujas variedades de híbridos podem fazer melhor uso dele do que qualquer outra planta. Plantar milho, que de um ponto de vista biológico sempre tinha sido um processo de captar a luz do Sol para transformá-la em comida, transformou-se em grande medida no processo de converter combustíveis fósseis em comida. Essa mudança explica a cor da terra: a razão pela qual Greene County não fica mais verde durante metade do ano está no fato de o agricultor não precisar de lavouras que captem um ano inteiro de luz solar; ele já se conectou numa nova fonte de energia. Quando somamos o gás natural contido no fertilizante aos combustíveis fósseis necessários para produzir pesticidas, para pôr o trator em movimento, providenciar a colheita, secagem e transporte do milho, descobrimos que cada alqueire de milho industrial requer o equivalente a um quarto ou um terço de galão de petróleo para ser produzido – ou 50 galões de petróleo para cada acre de milho. (Algumas estimativas são ainda mais altas.) Dito de outro modo, é necessário mais de uma caloria de combustível fóssil para produzir uma caloria de comida. Antes da introdução do fertilizante químico, a fazenda dos Naylor produzia mais de duas calorias de energia em alimentos para cada caloria de energia investida. 

Do ponto de vista da eficiência industrial, é muito ruim que não possamos simplesmente beber diretamente o petróleo, porque há muito menos energia num alqueire de milho (medido em calorias) do que existe em cerca de metade de um galão de petróleo necessário para produzi-lo. Em termos ecológicos, esse é um método extraordinariamente dispendioso de se produzir alimentos – mas há muito tempo a ecologia deixou de ditar o padrão adotado. Enquanto a energia disponível em forma de combustível fóssil continuar tão abundante e barata, economicamente continuará a fazer sentido produzir milho dessa maneira. O velho método de cultivar milho – usar a fertilidade proporcionada pelo Sol – pode ter sido, em termos biológicos, o equivalente ao almoço grátis, mas o serviço do restaurante era muito mais lento e as porções estavam longe de serem fartas. Na fábrica, tempo é dinheiro, e o rendimento está acima de tudo. 

Um problema com as fábricas, se comparadas aos sistemas biológicos, é que elas tendem a poluir. Como o milho híbrido é ávido por combustíveis fósseis, os agricultores o alimentam com muito mais do que ele é capaz de consumir, desperdiçando a maior parte dos fertilizantes que compram. Talvez sejam aplicados na época errada do ano; talvez sejam lavados por parte das chuvas; talvez o agricultor ponha uma quantidade extra só por via das dúvidas. “Eles dizem que só é necessário pôr 45 quilos por acre. Eu não sei. Tenho colocado até 90 quilos. A gente sempre fica com medo de errar para menos”, explicou-me Naylor, um pouco envergonhado. “É uma espécie de seguro de produção.” 

Mas o que acontece com os 45 quilos extras de nitrogênio sintético que os pés de milho de Naylor não consomem? Parte dele evapora no ar, onde acidifica a chuva e contribui para o aquecimento global. (O nitrato de amônia é transformado em óxido nitroso, um importante gás estufa.) Outra parte se infiltra no lençol freático. Quando fui me servir de um copo d’água na cozinha de Naylor, Peggy fez questão de que eu usasse uma torneira especial ligada a um sistema de filtragem por osmose reversa instalado no subsolo. Quanto ao resto do nitrogênio excedente, é lavado das terras de Naylor pelas chuvas da primavera, que o carrega para as valas de escoamento que acabam despejando-o no rio Raccoon. De lá ele deságua no rio Des Moines, descendo até a cidade de Des Moines – que se abastece com a água daquele rio. Na primavera, quando o escoamento do nitrogênio atinge seu ponto máximo, a cidade emite um alerta dirigido aos pais, avisando que não é seguro deixar que as crianças bebam água das torneiras. Os nitratos na água ligam-se à hemoglobina, comprometendo a capacidade do sangue de transportar oxigênio para o cérebro. Portanto, acho que estava errado ao sugerir que não ingerimos diretamente combustíveis fósseis; às vezes fazemos isso. 

Menos de um século se passou desde o advento da invenção de Fritz Haber, e mesmo assim ela já mudou a ecologia da terra. Mais da metade do suprimento mundial de nitrogênio utilizável é atualmente produzido pelo homem. (A menos que tenhamos sido alimentados desde a infância com alimentos produzidos organicamente, mais da metade do nitrogênio que temos no nosso corpo – cerca de um quilo – foi produzido pelo processo Haber-Bosch.) “Perturbamos o ciclo global do nitrogênio”, escreveu Smil, “mais do que qualquer outro, mesmo o do carbono.” As consequências podem ser mais difíceis de prever do que os efeitos do aquecimento global provocado pela nossa interferência no ciclo do carbono, mas podem ser não menos graves. O dilúvio de nitrogênio sintético fertilizou não apenas os campos de cultivo, mas também as florestas e os oceanos, beneficiando algumas espécies (o milho e as algas estão entre os dois maiores beneficiários) e em detrimento de várias outras. O último estágio dos nitratos que George Naylor espalha no seu milharal em Iowa é fluir pelo rio Mississippi até desaguar no Golfo do México, onde sua fertilidade fatal envenena o ecossistema marinho. A maré de nitrogênio estimula o crescimento desenfreado das algas e as algas asfixiam os peixes, criando uma zona “hipóxica”, ou morta, tão extensa como o estado de Nova Jersey – e que continua a crescer. Ao fertilizar o mundo, alteramos a composição das espécies do planeta e fazemos encolher sua biodiversidade.

- POLLAN, Michel; O Dilema do Onívoro, p. 37-41.

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